O contributo do ensino do português para o “Currículo para o Século XXI”

Competências, conhecimentos e valores numa escolaridade de 12 anos

Participação da APP na conferência Currículo para o Século XXI… (30 de abril de 2016)

Os programas de Português atravessaram um período turbulento nos últimos anos em que foram o lugar de confronto de diferentes conceitos ideológicos, culturais e pedagógicos. Depois de 17 anos sem alterações formais, em 2009, foi publicado um novo programa para o ensino básico cuja orientação foi contestada pelas “metas curriculares” de 2012, transformadas em programa oficial em 2015. No ensino secundário, houve também mudança e conflito que culminou, em 2014, com a publicação do atual programa. No cerne da polémica, estão diferentes conceções sobre os seguintes aspetos:

  • modo de presença do cânone e da história da literatura nos atuais programas de língua portuguesa;
  • diferentes conceções sobre a gramática e o seu ensino;
  • ideias contraditórias sobre a relação entre leitura e escrita escolar e o conceito de literacia na sociedade atual;
  • discordância global a respeito de competências, conhecimentos e valores requeridos aos jovens no nosso tempo.

Os programas de 2009 fundamentavam-se no conceito do desenvolvimento das competências linguísticas e comunicativas da oralidade, da leitura, da escrita e do conhecimento explícito da língua. Nesse programa, a literatura entrava como um nível mais elevado e específico tanto ao nível da escrita como da leitura, com conteúdos retóricos que não eram específicos do âmbito literário, mas, antes, se projetavam sobre toda a textulidade. A gramática, enquanto conhecimento explícito, requeria o desafio didático, a análise e a mobilização de conceitos aprendidos tanto para a produção como para a compreensão textual e discursiva. Os textos, para serem objeto de uma leitura autêntica, deveriam ser escolhidos por professores e alunos, de entre um conjunto de obras canónicas e/ou de reconhecida qualidade literária. Às competências dominantes da leitura e da escrita, acrescentavam-se a noção do oral formal e a dimensão da comunicação em rede, em novos géneros, como o correio eletrónico, a mensagem instantânea e o blogue onde predomina a publicação eletrónica e digital de textos multimodais e de objetos multimédia.

As metas curriculares contrariam estas tendências recusando o conceito de “competência”, congelando o campo das escolhas literárias numa pormenorizada lista de obras  e autores de leitura obrigatória, limitando a retórica à noção de figura decorativa e a gramática ao reconhecimento e classificação de elementos linguísticos. No programa publicado, ficaram de fora praticamente todas as referências ao modo de existência digital e eletrónico atual de grande parte da moderna literacia.

Analogamente, no ensino secundário, substituiu-se um programa assente em competências linguísticas e géneros textuais por um outro em que domina o conceito de educação literária vista como o conhecimento de textos da história da literatura portuguesa. A principal dificuldade deste programa é a imposição arbitrária de escolhas dos próprios autores que deixa pouca autonomia a professores e alunos.

Para superar estas dificuldades, a APP propõe o seguinte:

(i) Contributo para a definição do perfil de saída, numa escolaridade de 12 anos, prefigurando, de acordo com o título da Conferência, o perfil do cidadão do séc. XXI (competências, conhecimentos e valores).

Tendo em conta os contributos da disciplina de Português, língua materna, para a construção do perfil de saída do cidadão do séc. XXI, consideramos que, no termo de 12 anos de escolaridade, se deve esperar que os jovens:

  1. utilizem a língua portuguesa de forma eficiente em géneros textuais diferenciados e explicitem relações coerentes entre os diferentes planos do seu funcionamento – fonética e fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, léxico, texto e pragmática –   e as competências da oralidade, da escrita e da leitura;
  2. tenham desenvolvido um conjunto de competências, conhecimentos e valores que lhes permitam exercer a sua cidadania, através de uma participação educativa e sociocultural sustentada e informada [1];
  3. argumentem a partir de evidências e tirem conclusões a partir de argumentos válidos;
  4. dominem literacias múltiplas, que se estendem hoje para além da palavra escrita e incluem os discursos escrito, falado, visual, multimodal e multimédia, presenciais e a distância [2];
  5. exercitem a literacia do séc. XXI, não apenas a capacidade de usar as competências de leitura e escrita, mas a capacidade de  construir sentido a partir das linguagens que caracterizam uma cultura e de intervir ativa e autonomamente nessa cultura através dessas linguagens; [3]
  6. sejam capazes de interpretar e interligar os conhecimentos, para além de os recordar e compreender [4]
  7. participem em situações de aprendizagem baseadas em experiência e investigação;
  8. questionem a partir de curiosidade sobre o mundo [5];
  9. leiam artigos de divulgação científica e sejam capazes de discutir e colocar hipóteses sobre a validade das conclusões[6];
  10. leiam textos da literatura clássica e contemporânea em português, valorizando a intertextualidade,  e sejam capazes de explicitar aspetos do seu entendimento da língua como herança cultural e estética.

(ii)  Sugestões para a disciplina de Português com vista a melhorar o currículo (conteúdos, metas, objetivos essenciais, etc.)

(A) Alguns problemas a resolver nas metas e programas de Português:

  1. As Metas e programas de Português dos ensinos básico e secundário, que estão em vigor, não preparam os alunos para os desafios do século XXI. Uma coisa é o discurso de defesa das metas pelos seus autores, outra as implicações diretas e indiretas do cumprimento obrigatório desses normativos.
  2. A orientação metodológica dos Programas e metas do básico e secundário impõe,  pela própria sequencialização,  centenas de metas obrigatórias e  textos de leitura literária obrigatórios para cada ano de escolaridade.
  3. São praticamente ausentes os conteúdos não declarativos, ou procedimentais que, no programa de 2009 para o ensino básico, por exemplo, implicavam um trabalho sobre os conceitos e não uma memorização de terminologia ou explicitação de metalinguagem.
  4. Em cada um dos 12 anos de escolaridade, o peso de metas para cumprir e a leitura de textos literários obrigatórios implica uma gestão rígida dos tempos letivos, com o privilégio da exposição oral do professor e estratégias de trabalho com toda a turma, não restando tempo, nem  para o desenvolvimento de projetos, nem para a implementação de atividades experimentais, nem tão pouco para a experimentação de estratégias de diferenciação pedagógica ou de articulação interdisciplinar.
  5. Estão ausentes, do conjunto das metas curriculares para cada um dos 12 anos, orientações sobre procedimentos envolvendo avaliação diagnóstica e formativa. A obrigação do cumprimento das metas articula-se com a avaliação sumativa indiferenciada e dirigida a toda a turma.

(B) Sugestões para melhorar o currículo na disciplina de Português, com otimização das metas em vigor:

1’. Produzir orientações metodológicas sucintas e viáveis que permitam que os professores façam uma leitura mais sintética e global de metas que se apresentam, nos programas de Português do básico e secundário de uma forma atomística e conteudística.

2’. Reduzir e sintetizar metas e objetivos obrigatórios que restringem o trabalho que se pode fazer com os respetivos conteúdos linguísticos e literários. A título de exemplo: – tornar não obrigatórias metas sobre velocidade de leitura de palavras e pseudopalavras, no 1.º ciclo, com o risco de se criarem rotinas de leitura que ignoram a apreensão de sentido; – sintetizar metas que se repetem, que se apresentam de forma atomizada e que implicam muitas vezes apenas identificação de categorias e classificação: “identificar as funções sintáticas: sujeito (simples e composto) … (5G); “Identificar marcas formais do texto poético: estrofe, rima (toante e consoante)… (6 EL);  e “Identificar o sujeito subentendido e o sujeito indeterminado” (7G).

3’. Privilegiar conteúdos procedimentais que se encontram elencados no texto dos programas, a título de exemplo: “Relações contextuais; comparação de textos de autores contemporâneos com textos de outras épocas e culturas. Valores culturais, éticos, estéticos, políticos e religiosos” (9 EL); “Exposição sobre um tema. Apreciação crítica (de debate, de filme, de peça de teatro, de livro, de exposição ou outra manifestação cultural). Texto de opinião.” (11 EO)

4’. Privilegiar uma lógica de leitura de textos literários integrais e não de excertos. Sem esquecer que há textos e autores incontornáveis de leitura obrigatória, (Os Lusíadas, Gil Vicente, Eça de Queirós, Fernando Pessoa…), tornar não obrigatórias as listas de textos e autores, mantendo sempre atualizada uma lista de obras de referência, contemplando títulos indicados pelo PNL.

5’. Produzir orientações metodológicas que permitam que os professores de Português ponham em prática procedimentos envolvendo avaliação diagnóstica e formativa, trabalhem em pequeno e grande grupo no desenvolvimento de atividades experimentais e sejam incentivados a desenvolver projetos em articulação com outras áreas disciplinares.

(iii) Sobre as dificuldades do currículo em vigor relativamente ao perfil referido, vejam-se outros textos de reflexão da APP:

Direção da APP

 


[1] Veja-se o exemplo do currículo em França, para os alunos dos 6 aos 16 anos, a iniciar em 2016: “uma base comum a todo o currículo de conhecimentos, competências e cultura, a serem identificados pelos alunos” http://www.education.gouv.fr/cid2770/le-socle-commun-de-connaissances-et-de-competences.html)
[2] Dias de Figueiredo, “A língua portuguesa e as literacias do século XXI”, Congresso Internacional – A Língua Portuguesa: uma Língua de Futuro. Universidade de Coimbra, 2 a 4-12-2015- http://pt.slideshare.net/adfigueiredoPT/a-lingua-portuguesa-e-as-literacias-do-sculo-xxi).
[3] idem
[4] Jonassen, D.(2007). Computadores, Ferramentas Cognitivas –  Desenvolver o pensamento crítico nas escolas. Porto: Porto Editora.
[5]; idem
[6]; João Costa, “Português para quê?”, 1.º Encontro APM-APP, FCSH-UNL, Lisboa, 16-09-2015, e.o.)