Encontro de Profissionais da Escrita na Academia das Ciências : comunicação da Presidente da APP, Edviges Ferreira

Exmo. Sr. Doutor Artur Anselmo, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Dra. Ana Salgado, ilustres membros da mesa, caros colegas:

A APP quer agradecer o convite que lhe foi feito para participar neste encontro promovido pela Academia das Ciências para um debate sobre o Acordo Ortográfico.  Assim, a minha comunicação conterá um breve preâmbulo, uma contextualização história da questão ortográfica, visando a implementação do acordo e as consequências de um retrocesso.

A APP ficou surpreendida, quando foi interpelada sobre uma possível mudança no acordo, promovida pela Academia das Ciências! Como se explica que uma Academia que foi a principal defensora do acordo, que teve uma longa troca de negociações com a academia Brasileira, que foi a grande responsável pela promulgação do acordo, o esteja neste momento a pôr em causa’? Será que estamos perante uma situação de “ rei morto, rei posto?” Reconheço que, pontualmente, percebemos que o que foi feito contem algumas imprecisões. Recordo, por exemplo, um dos poemas da Mensagem o “Padrão”, onde   se afirma que “O esforço é grande e o homem é pequeno”, e “A alma é divina e a obra imperfeita”. No entanto, o reconhecimento de algumas imperfeições deve ser muito bem equacionado. Não estamos a fazer referência a  algumas pessoas que são/foram  atingidas por esta mudança! Ela abarca milhares de pessoas e muito especialmente toda a população escolar,  a quem já foi exigido que escrevesse segundo o novo modelo ortográfico. Não nos podemos esquecer que , de há  cinco anos para cá , tem havido a obrigatoriedade dessa nova ortografia. Cinco  anos correspondem a quase  metade dos anos da escolaridade obrigatória. Mas estes aspetos serão referidos  quando abordar as consequências.

Vejamos então, algumas etapas  deste processo:

Tudo começou, quando em 1911, foi levada a cabo uma profunda reforma ortográfica que modificou completamente o aspeto da língua escrita. No entanto, esta reforma foi feita sem qualquer acordo com o Brasil . Não valerá a pena, dado o pouco tempo de comunicação, fazer referência a essas alterações (refiro, a título de exemplo  Pharmacia  ,    Caravella, Estylo). Já nessa época, várias vozes se levantaram contra a mudança. Alguns resistiram à mudança, seja por receio de não saberem escrever pelas novas regras, seja por elo emocional ou intelectual à memória gráfica da escrita. Esse sentimento aparece refletido neste trecho de Alexandre Fontes, escrito nas vésperas da reforma ortográfica de 1911 (respeitando-se a escrita original do autor):

“Imaginem esta palavra phase, escripta assim: fase. Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto (…) Affligimo-nos extraordinariamente, quando pensamos que haveriamos de ser obrigados a escrever assim![4]

Teixeira de Pascoaes:

“Na palavra lagryma(…) a forma da y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.[5]

Ainda, Fernando Pessoa:

“Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.[6]

Mas continuemos a analisar o decurso dos acontecimentos:

Ao longo dos anos, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras  foram protagonizando sucessivas tentativas de estabelecimento de uma grafia comum a ambos os países.

Em 1931  foi feito um primeiro acordo.

No entanto, como os vocabulários que se publicaram continuavam a conter algumas divergências, realizou-se um novo encontro que deu origem ao Acordo ortográfico de 1945.  Este acordo tornou-se lei em Portugal , mas, no Brasil , não foi ratificado pelo governo.

Houve, entretanto, um novo entendimento entre Portugal e o Brasil , aproximando um pouco mais a ortografia dos dois países.

Entretanto, em 1975, houve novas tentativas de acordo que não tiveram sucesso, em parte , devido ao período de convulsão política que se vivia em Portugal

— e a nova tentativa de 1986 também não teve sucesso,  principalmente à volta da polémica  da supressão da acentuação gráfica nas palavras esdrúxulas.

No entanto, como, segundo os proponentes da unificação, a persistência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa — a luso-africana e a brasileira — impede a unidade intercontinental do português e diminui o seu prestígio no mundo, foi elaborado um “Anteprojeto de Bases da Ortografia Unificada da Língua Portuguesa”] em 1988, que conduziu ao novo Acordo Ortográfico em 1990.

Este acordo deveria entrar em vigor a 1 de janeiro de 1994 , o que acabou por não acontecer, pois nem todos os seus membros o ratificaram.

Assim, em 17 de julho  de 1998,  na cidade da Praia, Cabo Verde, foi assinado um “Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” que retirou do texto original a data para a sua entrada em vigor, embora continuasse a ser necessária a ratificação de todos os signatários para o Acordo de 1990 entrar em vigor. Uma vez mais, apenas os parlamentos do Brasil, Portugal e Cabo Verde aprovaram este protocolo.

Em Julho de 2004, os chefes de Estado e de governo da Comunidade  dos países de Língua portuguesa (CPLP),  reunidos em São Tomé e Príncipe, aprovaram um “Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico” que, para além de permitir a adesão de Timor- Leste, previa que, em lugar da ratificação por todos os países, fosse suficiente que três membros da CPLP ratificassem o Acordo Ortográfico para que este entrasse em vigor nesses países.

O Brasil ratificou o “Segundo Protocolo Modificativo” em Outubro de 2004 e, em Abril de 2005 , foi a vez de Cabo Verde. Em 17 de novembro de 2006, também S. Tomé e Príncipe  o fez. Estava assim cumprido o estabelecido por este protocolo.

Apesar de, na prática, as novas normas já poderem ter entrado em vigor nos três países que ratificaram o Acordo e os protocolos modificativos, considerou-se inviável avançar sem que Portugal também desse por concluído todo o processo.

Após alguns adiamentos, a Assembleia da República  acabou  por ratificar o Segundo Protocolo Modificativo em 16 de maio de 2008, sendo o texto promulgado pelo presidente da República Cavaco Silva, a 21 de julho de 2008.

Em Angola, o Ministério da Educação daquele país começou também a preparar a ratificação do Acordo Ortográfico, afirmando que o mesmo entrará em vigor logo que seja ratificado.

Entretanto, os chefes de Estado e de governo da CPLP, reunidos em Lisboa no dia 25 de julho de 2008, na Declaração sobre a Língua Portuguesa manifestaram “O seu regozijo pela futura entrada em vigor do Acordo Ortográfico, reiterando o compromisso de todos os Estados membros no estabelecimento de mecanismos de cooperação, com vista a partilhar metodologias para a sua aplicação prática”.

Situação em Portugal

Apesar de ter sido o primeiro país a ratificar o Acordo Ortográfico, logo em 1991, durante vários anos, o governo português protelou sucessivamente a ratificação do Segundo Protocolo Modificativo, apesar das pressões do governo brasileiro e da Academia Brasileira de Letras.

Em setembro de 2007, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, chegou a propor uma moratória de dez anos na entrada em vigor do Acordo para que houvesse uma “melhor preparação” por parte das editoras.

A ratificação do Segundo Protocolo Modificativo chegou a estar anunciada para o final de 2007.

No entanto, tal não chegou a acontecer, adiando-se uma decisão para 2008, sem se definir uma data concreta[. Entretanto, coincidindo com a visita do presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, ao Rio de Janeiro[ para as comemorações dos 200 anos da transferência da Corte para o Brasil, a 6 de março de 2008, o Conselho de Ministros aprovou, em Lisboa, uma proposta de resolução sobre o Segundo Protocolo Modificativo, na qual se lê:

O Estado português adotará as medidas adequadas a garantir o necessário processo de transição, no prazo de 6 anos, nomeadamente ao nível da validade da ortografia constante dos atos, normas, orientações ou documentos provenientes de entidades públicas, bem como de bens culturais, incluindo manuais escolares, com valor oficial ou legalmente sujeitos a reconhecimento, validação ou certificação.

O que aconteceu posteriormente?

Para além dos diferentes comentários a  favor e contra (o que , como já expliquei sempre acontece, muitas vezes sem haver uma leitura atenta dos documentos), foram estipulados prazos para a aplicação do acordo. Em relação à educação, foram dadas indicações para que a partir do ano letivo 2011/2012, se utilizasse  a ortografia do  Acordo.

A partir de 1 de janeiro de 2012, todos os documentos oriundos do Governo passaram  a cumprir  essa determinação.

Assim, estamos em 2017 e  há 5 anos de vigência do acordo, já os alunos foram ensinados a utilizá-lo, tendo adquirido a competência de escrita, segundo os novos modelos, foram atualizados os manuais,… e pretendemos agora voltar atrás? Deitar para  o lixo todo um trabalho realizado ao longo de cinco anos, porque um grupo de “velhos do restelo” não aceita a mudança?  Será que as consequências dessa  nova mudança não serão negativas para os nossos alunos (os homens de amanhã), para a economia de um país  que passa tentas dificuldades? Já se pensou  nos gastos que uma nova mudança iria trazer, não só para  a educação como também para a economia do país? E tudo isto porque um grupo de pessoas, com um nível etário já elevado não aceita a mudança?

Lisboa, Academia das Ciências, 9 de março de 2017